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segunda-feira, 14 de julho de 2008

A ralé eternizada - Jornal Estado de São Paulo - 6 de julho de 2008

* Jessé Souza

O debate sobre programas assistenciais à população mais pobre no Brasil se perde, muitas vezes, na miopia da conjuntura política e das querelas partidárias. É como se não existisse ldquopolíticardquo fora dos partidos e de suas respectivas propagandas. Eu gostaria de mudar o foco de análise, dado que ele é falso e condenado a atacar espantalhos e nunca os problemas reais. Na verdade, é a ldquosociedaderdquo e não o ldquoEstadordquo, ao contrário do que pensam o senso comum e as teorias ldquocientíficasrdquo que apenas reproduzem o senso comum em linguagem erudita, o verdadeiro local da formação dos consensos, quase nunca articulados conscientemente, que monta todo o fundamento do horizonte do possível em todas as questões políticas fundamentais.

Esses consensos sociais inarticulados são construídos a partir de idéias e concepções de mundo que logram se tornar hegemônicas em dado contexto histórico. A forma como a sociedade brasileira percebe, hoje em dia, sua abissal desigualdade social é ldquocolonizadardquo por uma visão ldquoeconomicistardquo da realidade social. O economicismo é, na realidade, um subproduto do liberalismo como visão de mundo hoje dominante em todo o planeta, a qual tende a reduzir todos os problemas sociais à lógica da acumulação econômica. Entre nós, no entanto, o economicismo, de tão hegemônico, transformou-se na única linguagem social compreensível por todos, de tal modo que nossos graves problemas sociais são todos superficialmente percebidos e amesquinhados a questões de ldquogestão de recursosrdquo. Com isso, cria-se a falsa impressão de que conhecemos os nossos problemas sociais e o que falta é apenas uma ldquogerênciardquo eficiente - a crença fundamental de toda visão tecnocrática do mundo - quando, na verdade, nem sequer se sabe o que se está combatendo.

Senão, vejamos. A crença fundamental do economicismo é a percepção da sociedade como sendo composta por um conjunto de homo economicus, ou seja, agentes racionais que calculam suas chances relativas na luta social por recursos escassos com as mesmas disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade. Nessa visão distorcida do mundo, o marginalizado social é percebido como se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de comportamento do indivíduo da classe média. Por conta disso, o miserável e sua miséria são sempre percebidos como contingentes e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo sua situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando para isso uma ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa ldquoandar com as próprias pernasrdquo. Essa é a lógica de todas as políticas assistenciais entre nós.

É esse mesmo raciocínio economicista, que abstrai sistematicamente os indivíduos de seu contexto social, que transforma a escola, pensada abstratamente e fora de seu contexto, em remédio para todos os males de nossa desigualdade. Na realidade, a escola, pensada isoladamente e em abstrato, vai apenas legitimar, com o ldquocarimbo do Estadordquo e anuência de toda a sociedade, todo o processo social opaco de produção de indivíduos ldquonascidos para o sucessordquo, de um lado, e dos indivíduos ldquonascidos para o fracassordquo, de outro. Afinal, o processo de competição social não começa na escola, como pensa o economicismo, mas já está, em grande parte, pré-decidido na socialização familiar pré-escolar produzido por ldquoculturas de classerdquo distintas.

Como toda visão superficial e conservadora do mundo, a hegemonia do economicismo serve ao encobrimento dos conflitos sociais mais profundos e fundamentais da sociedade brasileira sua nunca percebida e menos ainda discutida ldquodivisão de classesrdquo. O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas ldquoeconomicamenterdquo, no primeiro caso como produto da ldquorendardquo diferencial dos indivíduos e no segundo caso como ldquolugar na produçãordquo. Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar invisíveis todos os fatores e pré-condições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial. Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, na verdade, tornar invisível tanto a gênese quanto a reprodução da desigualdade no tempo.

Para se compreender como as classes sociais são diferencialmente produzidas é necessário perceber como os ldquocapitais impessoaisrdquo que constituem a hierarquia social e permitem a reprodução da sociedade moderna - o capital cultural e o capital econômico - são também diferencialmente apropriados. O capital cultural, sob a forma de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos. É essa circunstância que torna as ldquoclasses médiasrdquo, que se constituem historicamente precisamente pela apropriação diferencial do capital cultural, uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe alta se caracteriza pela apropriação, em grande parte pela herança de sangue, de capital econômico, ainda que alguma porção de capital cultural esteja sempre presente.

O processo de modernização brasileiro constitui não apenas as novas classes sociais que se apropriam diferencialmente dos capitais cultural e econômico. Ele constitui também uma classe inteira de indivíduos não só sem capital cultural nem econômico, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das pré-condições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação. É essa classe social que designo em meus trabalhos de ldquoralérdquo estrutural, não para ldquoofenderrdquo essas pessoas já tão sofridas e humilhadas, mas para chamar a atenção, provocativamente, para nosso maior conflito social o abandono social e político, ldquoconsentido por toda a sociedaderdquo, de toda uma classe de indivíduos ldquoprecarizadosrdquo que se reproduz há gerações enquanto tal. Essa classe social, que é sempre esquecida enquanto uma classe com uma gênese e um destino comum, só é percebida no debate público como um conjunto de ldquoindivíduosrdquo carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de discussão superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como ldquoviolênciardquo, ldquosegurança públicardquo, ldquocombate à fomerdquo, etc.

Afinal, a produção de indivíduos ldquoracionaisrdquo e ldquocalculadoresrdquo, os tais que poderiam com a ajuda passageira do Estado depois ldquocaminhar com as próprias pernasrdquo, não é um dado ldquonaturalrdquo, ldquocaído do céurdquo, como pensa o economicismo dominante, o qual, aliás, não é ldquoprivilégiordquo de economistas. Ele é produto de capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos por mecanismos de identificação afetiva por meio de exemplos cotidianos assegurando a reprodução de privilégios de classe indefinidamente no tempo. Disciplina, capacidade de concentração, pensamento prospectivo que enseja o cálculo e a percepção da vida como um afazer ldquoracionalrdquo são capacidades e habilidades da classe média e alta que possibilitam primeiro o sucesso escolar de seus filhos e depois o sucesso no mercado de trabalho. O que vai ser chamado de ldquomérito individualrdquo mais tarde e legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que ldquocai do céurdquo, mas é produzido por heranças afetivas de ldquoculturas de classerdquo distintas, passadas de pais para filhos. A ignorância, ingênua ou dolosa, desse fato fundamental é a causa de todas as ilusões do debate público brasileiro sobre a desigualdade e suas causas e as formas de combatê-la.

Na realidade, essa classe, que soma 1/3 da população brasileira, é produzida e reproduzida como classe precarizada, pela não-incorporação dos pressupostos indispensáveis à apropriação nem de capital cultural nem de capital econômico. Ela é literalmente reduzida a ldquocorpordquo e é explorada pelas classes média e alta como ldquocorpordquo vendido a baixo preço, seja no trabalho das empregadas domésticas, seja como dispêndio de energia muscular no trabalho masculino desqualificado, seja ainda na realização literal da metáfora do ldquocorpordquo à venda, como na prostituição. Os privilégios da classe média e alta advindos da exploração do trabalho desvalorizado dessa classe são insofismáveis. Se pensarmos apenas nas empregadas domésticas, temos uma idéia de como a classe média brasileira, por comparação com suas similares européias, por exemplo, tem o singular privilégio de poder poupar o tempo das repetitivas e cansativas tarefas domésticas que podem ser investidas em trabalho produtivo e reconhecido fora de casa.

Além de se reproduzir como mero ldquocorpordquo, incapaz de atender às demandas de um mercado cada vez mais competitivo baseado no uso do conhecimento útil para o mercado, essa é a classe também da escola pública brasileira de segunda classe e do serviço de saúde público de segunda classe. Essa é também a classe que é transformada em delinquumlente e perigosa e julgada por outra classe cuja truculência e insensibilidade social podem ser perfeitamente percebidas no magistral filme Juízo, de Maria Augusta Ramos. Essa é a nossa ldquoluta de classesrdquo intestina, cotidiana, invisível e silenciosa que só ganha as manchetes sob a forma ldquonovelizadardquo da violência transformada em espetáculo e alimentada pelos interesses comerciais da imprensa.

Que o leitor não me entenda mal. É muito melhor assistencialismo do que nada, até mesmo um assistencialismo de curto prazo e míope como é inevitável com os pressupostos do economicismo. Mas isso só vai conseguir melhorar as condições de reprodução da ldquoralérdquo enquanto ldquoralérdquo. Só vai ldquoempurrar com a barrigardquo o grande drama histórico da sociedade brasileira desde o início de seu processo de modernização a continuação da reprodução de uma sociedade que ldquonaturalizardquo a desigualdade e aceita produzir ldquogenterdquo de um lado e ldquosubgenterdquo de outro. Isso não é culpa de governos. São os consensos sociais vigentes que elegem os temas dignos de debate na esfera pública assim como elegem a forma de não compreendê-los. No nosso caso, ldquoescolhemosrdquo debatê-los superficialmente e torná-los invisíveis. Nossa ojeriza histórica de nunca perceber e admitir conflitos sociais já teve várias causas e vários nomes. Hoje em dia é o economicismo hegemônico que esconde sistematicamente, mesmo para os setores potencialmente mais críticos de nossa classe média e alta, nosso conflito social mais fundamental, que é também a fonte de todos os nossos reais desafios como sociedade.

Jessé Souza , doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg Alemanha e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor de A Construção da Subcidadania UFMG.